domingo, 14 de outubro de 2012

Onde está Maria?

       Maria!...Maria!...
Junto à janela, presa à observação de não se sabe o que, estava uma linda menina de mais ou menos cinco anos de idade.
Tez clara, belos cabelos encaracolados levemente dourados emolduravam o rostinho onde, atentos, os olhos esplêndidos encimados por sedosas e espessas pestanas, guardavam um ar de abandono, ensimesmados numa auréola de sonho, de profundas divagações...
Era sempre assim. Bastava o clic da objetiva da mente no festival de alguma lembrança, e lá estava ela, a perder-se num oceano de abstrações.  Maria era bonita, no entanto, existia ali, no cantinho do olhar, um certo mistério, um indefinível apelo, fundindo ternura e tristeza pelas alamedas bisonhas de um sorriso trigueiro e indefinível.
Havia luz, e havia perguntas no seu jeito de olhar, indagações que pairavam no ar sem resposta.
Havia presenças, havia surpresa e também, distância.
Presa à observação na janela, não via o dia, nem a beleza da florada que, chegada a primavera, cobrira de esperança e alegria o jardim, embalsamando a atmosfera com o hálito perfumado de madressilvas e jasmins.  Olhar disperso percuciente deixava-se envolver por interrogações, sombras buliçosas a cobri-la em seu manto de emoções indescritíveis. Lembrava o pai, aquela expressão de ternura e carinho na beleza do olhar, a dizer tanta coisa que ela, por enquanto, não poderia entender...
 Falava de amor, e quanto amor meu Deus!
 Falavam de esperança, de encontros, de sofrimentos e desencantos, dúvidas a bailar turbulentas num oceano infinito e tempestuoso de torturas e interrogações, tais precipites labaredas lambendo fotos e recordações, para o que o passado, enfim, esquecido, o deixasse viver livre de tormentosas procelas e ingentes martírios no carrossel sedento das lembranças que marchavam solenes e ininterruptas.
        Mas Maria era feliz, ou pelo menos, tinha quase tudo para sê-lo. Era muito amada por sua mãe que a cobria de sonhos e esperanças, voejando qual fantástica mariposa por sobre a luz que aquele corpinho, tenro e delicado espargia a cada movimento. Era como se ali, naquela flor, residisse o alimento, a razão, o tudo que movimentava a vida, e era o que bastava
        Naquele corpinho frágil, debatia-se, quiças, um espírito envelhecido e temeroso das árduas tarefas acrisoladas pelo manto da carne.
       O sol se desfazia em píncaros de luz por sobre a cidade morna, após um dia exaustivo, e os pássaros em eloquente querela se dispunham, cada um, a procurar seu ninho para o aconchego da noite que dentro em pouco, viria toldar o horizonte, febrilmente vermelho em máculas tristonhas de violáceas emanações.  E Maria continuava em seu cismar perdido na concha de um tempo lá pras bandas do inconsciente, onde pernoitavam lembranças e inquirições dificilmente cogitadas pela mente infantil que devaneava, sem ao certo saber o que buscava.
        Nascera na madrugada de um dia muito frio.  O corpinho tenro, agarrado ao útero da mãe menininha, fora de lá arrancado quase com violência a fim de salvar-lhe a vida.
 Acho que ela não queria nascer.  O ninho aconchegante que a mãe em seu imo lhe oferecia, representava a segurança contra um mundo hostil que ela adivinhara através das lágrimas, sentimentos entrecortados de dúvidas e ansiedades no coração daquela que lhe dera a vida.
Ela, ali escondidinha, um dia, ouvira o apelo do pai, sentira-lhe as mãos quase como uma carícia, ouvira-lhe as palavras plenas de ternura, rogando-lhe que viesse logo, ela que tardava mais que o necessário, pondo em risco sua existência. E sua voz, quente e mansa, ainda soava nos recessos de seu interior palpitante e temeroso, dadas as circunstâncias que ela ignorava.  Depois, flor arrancada à haste, olhou o mundo com olhos surpresos e indagadores, e desde então, adormecido o inconsciente, começara para ela nova vida na qual, a pequena semente começaria um novo ciclo, a preparação da sementeira num futuro desconhecido.
Por tudo isso, drama que seu inconsciente adivinhava sem atinar bem com verdades, Maria era uma menina triste.
Guardava muita vida no olhar febril e irrequieto, a descobrir o mundo através do toque desinquieto das mãos que a tudo buscavam na ansiedade típica do ser que contempla a vida descortinando horizontes paralelos, vida dispersa, e tocando-as, agasalhar contente, átomos de vibrações dessa vida, compondo a música eloqüente do seu destino de musa, misto de anjo e de fada.
Crescera num ambiente acolhedor mesclado de amor, ternura e mil cuidados, desvelos constantes, mas... por que haveria sempre um, mas...?
Apanágio hilariante de profundas cogitações, a mente humana parece captar em determinadas instantes, conquanto fugazes, resquícios moldados nas dimensões do tempo cujo requinte das máscaras não conseguiu destruir.
Era a falta do pai que a deixava assim, ou era ainda algo que se entrevia nas linhas da vida através de um não sei que pairando no ar, uma necessidade maior, a falta de unidade, do triângulo uníssono para compor a melodia suave do seu caminho?
              E, Maria, buscava através do olhar febril e percuciente, respostas que suavizassem os contornos esboçados do destino, no qual o elo que faltava, criavam um vinco de solidão capaz de alternar seu humor da alegria para a nostalgia de instante a outro.
           --    Maria!
Novamente se fez ouvir a voz argentina buscando, debalde a atenção da garota que, cismarenta continuava seu vôo qual borboleta sedenta de luzes e de cores.
     --   O que foi meu anjo?  Eu te amo meu amor, conta pra mamãe o que você está pensando...
A menina esboçando leve sorriso, mergulhou nos da mãe, os olhos plenos de interrogações misto ternura, rejeição, tristeza, deixando por um instante vagar a mente num turbilhão de emoções para depois perguntar:
      - Por que papai não vem com a gente?...
       Eu a via sempre através da janela, olhar perdido ou mesmo a brincar com outras crianças. Sentia falta do seu sorriso, daquele seu jeito especial, anjo e criança traquinas, trazendo uma alegria alucinante e ao mesmo tempo, aquele aperto no coração teimando em encontrar tristezas na pequenina Maria, tão linda e tão frágil!...
Um dia não a vi mais à janela...
Debalde a procurei. Havia partido com a família não sei pra onde. Confesso que chorei sentindo falta do pequeno anjo sem asas, pássaro triste engaiolado num corpo de criança a quem eu ainda tanto amo.
Jamais poderei esquecer o brilho dos seus olhos, o sorriso puro e ingênuo quando a estreitava nos braços, quando lhe contava estórias mil, e ela atenta, seguia um a um os meus gestos, me abraçava contente, e eu era feliz.
       O meu olhar de ontem, ainda a procura nas dobras de um tempo irreverente e cruel, que indiferente à dor de uma saudade, continua inflexível na sua marcha, e célere, a transformou em mulher.
       Onde estará a pequena Maria, quem escutou seu canto e presenciou a mutação que a vida e o tempo impõem ao ser humano?
       Onde está você Maria?


(Medalha de Bronze   do V Concurso Nacional  de Crônicas do Clube Literário de  Brasília DF  - 1996)

Do Livro "Confidências no Espelho" A ser brevemente editado.
Scarolla Carolina

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