O Pacotão
Ernestina tivera de um casamento feliz, a graça de três filhos que, enternecidamente a amavam, velando por ela com dedicação e carinho desde que enviuvara.
Por isso, quando surgiram os primeiros sintomas da doença que breve a libertaria das mazelas do mundo físico, os filhos quiseram dar-lhe o melhor tratamento possível.
E para tanto, providenciaram rapidamente a viagem para a capital do estado de São Paulo onde procurariam o médico indicado por amigos, o melhor profissional da área para tratar daquela que, para eles, era mãe inigualável.
Assim, depois de muita burocracia e paciência, ei-los na Beneficência Portuguesa de São Paulo onde, já internada, dona Ernestina recebia o tratamento adequado ao mal que depressa a consumia.
Mas apesar dos esforços, do carinho e medicamentos, em breves dias, eis que, invadindo a privacidade do quarto, a “Magra”, arrebata a doce senhora para outras plagas além dos horizontes do mundo, onde as divisas e o dinheiro já não têm nenhum valor.
Vencendo a dor, logo se propuseram a providenciar o translado do corpo para Uberaba, cidade mineira onde nasceram, onde seriam prestadas à morta querida, as derradeiras homenagens, descansando, para sempre, ao lado do esposo inesquecível, no jazigo da família.
No entanto, foram advertidos pelo médico do trabalho e do tempo que levariam para retirar do hospital e da cidade, o corpo da mãe.
Condoído pela dor dos rapazes, o profissional resolveu ajudá-los num plano audacioso para burlar a burocracia, e resolver, com presteza, o problema da família enlutada.
Era apenas uma questão de tempo, pois logo o corpo se tornaria rígido, e embrulhado convenientemente, não chamaria a atenção, existindo apenas, a peculiaridade do tamanho que transformaria a velha, num enorme pacotão.
A idéia, apesar de inesperada, foi imediatamente aceita trazendo alívio aos moços já tão acabrunhados pela situação de dor pela perda da mãe amada e estremecida.
De posse do precioso fardo, empreenderam pela calada da noite, a longa jornada de volta ao lar.
Madrugada alta, cansados ao extremo, quase vencidos pelo sono, resolveram descansar um pouco, fazendo um lanche rápido antes de continuar o percurso.
E foi aí que o inusitado aconteceu...
O carro estacionado ao lado do restaurante exercia sobre as pessoas, enorme fascínio devido ao volumoso pacotão amarrado ao bagageiro, suscitando aos amigos do alheio, a cobiça e a curiosidade.
E quando refeitos da fadiga, os irmãos se dispuseram a prosseguir a jornada, quase desfaleceram de susto ao encontrar o automóvel aliviado da bagagem...
Horror!... Indignação!... Revolta!...
Mas, por mais que estes sentimentos os açoitassem, não puderam fazer sequer uma denúncia, pois, traria complicações ao Hospital, ao médico amigo que os ajudara, sendo que o translado fora feito à revelia da lei.
Cabisbaixos, emudecidos, retornaram para sua cidade engolindo as lágrimas de dor, espanto e indignação.
Passados tantos anos, ante a perplexidade do acontecido, ainda fico a imaginar, cá no silêncio do meu quarto, qual seria a expressão do ladrão infeliz, quando lá no meio do mato, naquela noite fria, abrindo o pacotão deu de cara com o defunto gelado e enrijecido.
Chego a ouvir seu grito de horror, e penso mesmo ouvir o barulho dos seus passos, na correria pelo mato afora, sem entender a razão do estranho embrulho e do seu fatídico conteúdo.
Scarolla Carolina
Do Livro "Confidências no Espelho". Livro de Contos e Crônicas de autoria de Sônia Carolina, a ser brevemente editado.